O Brasil produz soja, mas, antes de o grão ser plantado, o país importa fertilizantes da Rússia (e outros países) para preparar o solo e aumentar a produtividade do plantio. O Brasil fabrica automóveis, mas eles só saem das fábricas depois que semicondutores produzidos em Taiwan abastecem as linhas de produção.
Se em 2020 e 2021, a pandemia da covid-19 desestruturou diversas cadeias globais de produção, provocando inflação e crescimento fraco, a invasão da Ucrânia pela Rússia introduziu um componente geopolítico nessa equação. E elevou seus riscos.
Rússia e Ucrânia respondem, juntos, por 28% da produção mundial de trigo e 20% da oferta de milho, enquanto a Rússia detém 13% do mercado mundial de fertilizantes e 12% do de petróleo.
Além disso, o país governado por Vladimir Putin também é um importante fornecedor de minérios, como paládio e níquel.
Por isso, uma pergunta entrou no radar dos analistas: além do aumento de preços, o conflito pode afetar as cadeias de suprimentos e agregar mais instabilidade à economia mundial? E como isso afeta o Brasil?
Analistas não veem – por enquanto – medidas reais que afetem o fornecimento de insumos para a indústria e o agronegócio.
Há muita incerteza com os desdobramentos da guerra entre Rússia e Ucrânia, mas a dependência que a Europa possui do gás russo faz diferentes analistas estimarem sanções produtivas brandas por parte de Estados Unidos e Europa.
Depois de uma quinta-feira (24) tensa e de forte alta de preços, a sexta-feira (25) atenuou um pouco a percepção de risco entre os analistas.
Mas, é claro, houve impactos, e eles foram sentidos de forma intensa nos preços de diversas commodities, como petróleo, trigo e milho. A expectativa é de novos aumentos.
Se a alta dos preços pode ajudar setores e empresas produtoras desses bens e elevar sua rentabilidade, tem como contraponto o aumento da inflação e o risco de uma desaceleração adicional da economia brasileira e mundial.
Dependência de fertilizantes
A balança comercial do Brasil com a Rússia é concentrada em poucos produtos nas duas pontas, e há uma dependência da importação de fertilizantes, insumo fundamental para a produção agrícola brasileira, enquanto o comércio exterior com a Ucrânia é pulverizado e sem riscos estratégicos.
Rússia e Bielorrússia (Belarus) atendem metade da importação brasileira de cloreto de potássio, tipo de fertilizante com poucos fornecedores mundiais. O Brasil importou US$ 5,7 bilhões da Rússia no ano passado, dos quais 62% de fertilizantes (incluindo o potássio).
Problemas com o fornecimento da Bielorrússia já começaram no ano passado, e a expectativa é que uma parte dessa importação possa ser direcionada do Canadá, mas a margem é pequena.
Pela dependência, o impacto na oferta de fertilizantes para o Brasil está sendo monitorado.
“Em um primeiro momento o que vamos ver, como já aconteceu no primeiro dia do confronto, é aumento dos preços”, diz Bruno Fonseca, analista de insumos e defensivos agrícolas do Rabobank.
“Por enquanto não vimos nada em sansões que afetem o setor de fertilizantes”, explicou.
O preço da tonelada da ureia, importante matéria-prima para fertilizantes importada da Rússia, subiu quase US$ 200 no primeiro dia de confronto, de US$ 570 para 750, conta o analista (cloreto de potássio não tem cotação em bolsa).
Já o risco de oferta, pondera, está associado a um elemento que ainda não está claro no cenário mundial: quais serão as sanções que Estados Unidos e Europa podem impor à Rússia. Na quarta-feira, a percepção de risco de oferta no segmento de fertilizantes era baixa; passou para “super alta” na quinta-feira e, na sexta-feira, ainda era alta, mas menor que na quinta-feira, diz o analista.
Mauro Osaki, pesquisador da área de custos agrícolas do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, lembra que a guerra é o “terceiro elemento” a impactar o preço dos fertilizantes em um curto espaço de tempo. Antes vieram o preço do gás e a pandemia.
Como consequência, o preço do cloreto de potássio triplicou em pouco mais de um ano. No acompanhamento que ele faz do preço em reais para o agricultor brasileiro (e já deflacionado pelo IGP), a tonelada passou de R$ 2.569 para R$ 6.360 entre janeiro e dezembro de 2021.
Encontrar um substituto para fornecer cloreto de potássio, diz, é difícil porque são poucos produtores de peso no mundo, enquanto o leque de fornecedores de ureia é amplo e o Brasil teria condições de substituir a fatia russa.
No mercado de fertilizantes, um elemento a favor do Brasil nesse momento é o tempo: historicamente, 60% da importação de fertilizantes ocorre no segundo semestre, segundo acompanhamento de Osaki. Fonseca, do Rabobank, também vê essa sazonalidade, que dá tempo para que as repercussões do conflito fiquem mais claras.
Osaki lembra, porém, que a logística brasileira reduz essa margem que os compradores podem ter para adiar negociações de preços em um cenário pressionado pelo conflito.
Incerteza sobre as safras de trigo e milho
Além do impacto sobre os fertilizantes, o cenário do conflito ainda está muito nebuloso para estimar riscos de produção da próxima safra de trigo e milho na Rússia e Ucrânia, diz Osaki. Ele conta que não há informações claras sobre o plantio da safra nos dois países, que deveria estar sendo preparado.
Marcela Marini, analista de grãos do Rabobank, explica que antes mesmo da crise entre Rússia e Ucrânia, o estoque de commodities agrícolas já estava baixo no mundo, o que explica os preços elevados, em máximas históricas.
Essa situação, associada à expectativa de uma menor disponibilidade de trigo e milho pelos dois países em conflito, que são grandes produtores, deve ter um impacto positivo no preço destes grãos no mercado internacional e interno.
Além disso, Ucrânia e Rússia são responsáveis por 80% das exportações globais de óleo de girassol, e os temores na oferta devem elevar a demanda por outros óleos vegetais, o que favorece a cadeia da soja no Brasil, avalia Marini.
Impactos em diferentes setores, de alimentos a varejo
Embora a alta dos fertilizantes também tenha potencial para aumentar os custos do agronegócio, Pedro Fonseca, analista de agro, food & beverage da XP, pondera que produtores de países com custos de produção estruturalmente mais baixos, como é o caso do Brasil, devem sofrer menos e podem reduzir o impacto com os preços de venda mais altos.
Se essa equação tende a ser favorável para os produtores de commodities, deve prejudicar os frigoríficos e os fabricantes de alimentos e de bebidas, como Ambev e M. Dias Branco, que enfrentam menor capacidade de repassar preços em um cenário de queda do poder de compra da população, observou o analista em call realizada pela equipe de research da XP para discutir cenários de impactos setoriais em meio à guerra na Ucrânia.
Outros setores cujo desempenho é diretamente associado à renda da população, como varejo e produtos de consumo, também foram relacionados como de potencial impacto negativo.
Danniela Eiger, analista de varejo da XP, pontuou que, para algumas empresas de bens de consumo, o confronto, ao elevar custos de produção de matérias-primas associadas a commodities (casos de Alpargatas e Grendene), deve pressionar as margens.
Para ela, companhias com mais foco em média e alta renda (como Arezzo) tendem a ser menos afetadas.
Entre as empresas com potencial de serem beneficiadas pela alta das commodities, os analistas da XP destacaram Petrobras, CBA (a Rússia é um grande produtor de alumínio e, se sua produção ou exportação forem afetadas, podem favorecer a empresa localizada no Brasil), BrasilAgro, São Martinho, WEG, Embraer e Tupy, entre outras, por uma combinação que contempla ou produção direta de commodity ou uma equação de participação de mercado menos exposta à Europa e boa composição de custos.
O cenário de Paulo Gala, economista-chefe do Banco Master e um atento observador do comércio mundial, não contempla sanções fortes para a Rússia partindo da Europa. Ele lembra que, na média, 40% do gás consumido na Europa é russo.
“Há uma dependência enorme do gás da Rússia, então, mesmo, querendo impor sanções, esses países não conseguem”, observa, acrescentando que a Alemanha para sem o gás russo. E alternativas, como a importação de gás líquido dos Estados Unidos ou do Japão, são caríssimas e de baixo alcance em volume.
Lívio Ribeiro, sócio da BRCG Consultoria e pesquisador-associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre), compartilha da opinião de que a dependência europeia do gás russo dificulta uma reação mais forte da Europa, o que pode reduzir eventuais impactos de desorganização da produção mundial.
“O Ocidente está leve”, diz, olhando para as primeiras reações à invasão da Ucrânia pela Rússia. O risco de que “Putin feche a torneira” [do gás] explica essa reação, segundo ele.
Ribeiro pontua, contudo, que o processo de desorganização das cadeias produtivas, que se arrastou mais tempo que o esperado com a pandemia, ganhou agora um elemento adicional de confusão: o risco geopolítico.
“Antes, a normalização das cadeias de produção e o momento em que ela ocorreria era um debate econômico. Agora, ela ganhou outra dimensão e agregou mais incertezas a esse processo”, observa.
De acordo com a Sondagem Industrial da FGV, no último trimestre de 2021, 20% da indústria de transformação reportava problemas com falta de matérias primas, situação que a Confederação Nacional da Indústria (CNI) só esperava ver normalizada em meados de 2022.
A dúvida, agora, é o quanto a guerra impacta a esperada volta ao normal. “E também saber que novo normal é esse”, diz Ribeiro.
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Por: Giovanna Sutto – InfoMoney